— 07 de janeiro de 2025
Quando uma anciã da Boa Morte morre, ela se transforma em garça e volta voando para a África. Foi a partir desse mito que criamos alguns dos vestidos desfilados na SPFWn58. Conheça mais sobre a Irmandade da Boa Morte. VEJA MAIS

Assim que pisamos em Cachoeira (BA) percebemos que ali era um lugar diferente. Um lugar histórico carregado de acontecimentos. Ao mesmo tempo um lugar calmo, sereno, com aspecto de interior antigo. Conhecendo melhor a história da cidade e seus moradores, vimos que sua magia se dá nisso: na concomitância entre permanência e renovação de sua identidade.

No sec XVIII e XIX Cachoeira era tão importante quanto Salvador. Todas as embarcações paravam primeiro ali para o comércio de fumo e açúcar. E com isso ideias e costumes se moldaram junto com as mudanças políticas. A cidade foi muito importante no processo de independência do país e na luta contra a escravidão. E hoje abriga duas universidades com cursos voltados à arte. 

A Irmandade da Boa Morte surge nesse contexto identitário. A Bahia estava dividida e crescia uma forte rejeição aos lusitanos, o que acabou “unindo” senhores brasileiros e escravizados. Isso possibilita pequenos passos para a formação cível desses escravizados e movimentos políticos surgem a partir daí. Após a Revolta dos Malês, em 1835, em que os negros foram barbaramente reprimidos; surge uma Irmandade formada inteiramente por mulheres negras que cultuava os orixás e os santos católicos. O sincretismo criando novas formas de união e permanência dos costumes. Todos que faziam parte da confraria deveriam doar quantias para o custeio de alforrias, festejos religiosos, vestimentas e custos com o enterro. A Irmandade da Boa Morte foi responsável por um número alto de alforrias de escravizados.

Enquanto estávamos por lá, ouvimos a história de que quando uma anciã da Boa Morte morre, ela se transforma em garça e volta voando para a África. Foi a partir desse mito que criamos alguns dos vestidos desfilados na SPFWn58, onde colocamos a garça pronta para sair do tecido e alçar vôo.

As cores também são inspiradas nos trajes tradicionais da Irmandade, com a presença de preto, branco e vermelho. O branco é a primeira veste, a saia baiana de richelieu. Daí vem o bioco cobrindo parte da cabeça, o que evidencia o luto. A última veste, a saia preta, potencializa a quebra do preconceito que durante séculos elas viveram. E, por último, o pano da costa, de um lado de veludo preto e do outro seda vermelho. No total o traje traz influência islâmica, muçulmana e asiática. Uma simbologia partilhada. “Assim é a Irmandade: rica, complexa, sincrética. Uma tessitura repleta de tramas, imaginação e afetos. Potência aberta e indefinida de sentidos.” Renata Pitombo Cidreira, professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda.

Todo mês de agosto acontece a festa da Boa Morte, em que a cidade de Cachoeira passa a festejar com samba de roda, missas, procissões, ceias e até um cortejo que representa a morte de Nossa Senhora. Todos os anos os festejos garantem a permanência da Irmandade, atrai a atenção para novas integrantes e garante a “Boa Morte” de muita gente.