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Na pesquisa para a Coleção Santa Teresa, no segundo semestre de 2022, tivemos a sorte grande de conhecer o atelier do artista plástico Carlos Vergara, ali próximo ao Largo das Neves (RJ). A casa é um labirinto de várias fases e projetos do artista, espaço que ele continua indo, diariamente, trabalhar e criar. Numa das salas, nos deparamos com as fotos do bloco Cacique de Ramos e nos apaixonamos instantaneamente. No Carnaval que se aproxima, o Cacique finalmente fará seu desfile comemorativo de 60 anos (61, já que ano passado não teve devido à pandemia). Lembramos das fotos de Vergara e entramos em contato para ter acesso a elas novamente. Somando a leitura do livro Carnaval-Ritual, de Maurício Barros de Castro, mergulhamos nesse trabalho que pulsa e se movimenta, sugere o som, o suor e as diferentes sensações de ocupar a rua e fazer parte de um bloco de carnaval.
É a década de 1970 e o Brasil vive uma ditadura militar. O movimento artístico sofre censura a cada passo de resistência. Exposições, filmes e peças teatrais são impedidas de acontecer. Carlos Vergara, que já havia participado da famosa exposição Opinião 65, no MAM RJ, integrava o grupo Nova Figuração Brasileira, composto por nomes como Antonio Dias e Rubens Gerchman. O grupo propunha uma comunicação direta com o público, modificar a realidade através de um olhar crítico. Vergara também trocava com importantes antropólogos da época, como Roberto da Matta e Victor Turner. Toda essa pulsão criativa, impedida pela perseguição da ditadura, fez com que Vergara decidisse “olhar para fora” de seu atelier. Esse gesto evidenciava o desejo de vínculo de sua arte à realidade social do Brasil.
Vergara já era frequentador do Zicartola, casa de samba de Cartola e sua esposa, cozinheira e pastora Zica, um sobrado no centro do RJ. Mas o que o aproximou do carnaval carioca foi a descoberta de um bloco de rua criado por jovens negros da periferia do subúrbio de Ramos, longe das escolas de samba, estas já consagradas intelectualmente na época. O Cacique de Ramos foi fundado em 1961, na Zona Norte do RJ. Seus fundadores tinham nomes indígenas: Ubirany, Ubirajara, Ubiracy, Aimoré, Iara, Maíra, Jurema, entre outros. Eles traziam em sua história as ancestralidades indígenas (povos originários do país) e africanas (Umbanda e Candomblé) e ainda referência aos filmes westerns americanos.
A cada ano o Cacique cria uma nova fantasia, que é a mesma para todos os integrantes. Sem hierarquia, qualquer um pode participar. Basta comprar a fantasia e usar no dia. A construção do bloco é totalmente horizontal e seus participantes são todos iguais, com a mesma pele de cacique. “Um contrato livre e radical em sua anti-burocracia”, diz o autor do livro estudado, Maurício Barros de Castro. A única coisa que o bloco exige é se juntar ao coletivo. Essa “desorganização” em seu início evidenciava uma potência política. Nas palavras do próprio Vergara:
“ [...] o movimento que foi feito, este de olhar para fora, me levou a descobrir um conjunto como o Cacique de Ramos, que tinha um discurso absolutamente político e organizado; “nós somos 7 mil e somos todos caciques, somos todos iguais e somos todos diferentes”. E a operação chamada de arte minha foi de deslocar daquele lugar do carnaval, que é um pouco o lugar do esquecimento, para um outro lugar, o museu, que é um lugar de memória, de lembrança e de permanência.”
“Dos 7.000 componentes eu sou 1”. É o emblema do grupo. Essa voz afirma a igualdade dos membros e ao mesmo tempo a particularidade de cada um. Algo como os 3 mosqueteiros,“um por todos e todos por um”, mas muito maior. 7.000 adultos, jovens, homens, mulheres, negros e brancos; a maioria da periferia, um exército do povo com as peles indígenas e o batuque de tambores. As fantasias de napa e silk screen de cores branca, preta e vermelha criadas a cada ano por Romeu de Vasconcellos traziam o aspecto uniforme de vestir a mesma pele. A incorporação a um só corpo. Já as pinturas faciais, em referência aos índios americanos, eram feitas com esparadrapo e cada uma trazia sua particularidade, nenhuma era totalmente igual a outra.
Em uma viagem à Búzios, Vergara observou de perto um grupo de caramujos presos à uma pedra. Num primeiro olhar, percebeu os caramujos como todos iguais. Mas ao chegar perto, cada um tinha um traço particular, grafias singulares, assim como os caciques de Ramos. Vergara passou a fotografar os caramujos em diversas posições e combinações, inclusive com o sinal de igual e diferente, propondo a reflexão das singularidades dentro de uma massa, um olhar singelo a partir dos caramujos.
A experiência carnavalesca de rua de se misturar à multidão revela uma frágil fronteira entre o coletivo e o indivíduo. Hanna Arendt chamava de “felicidade pública”, sentir seu verdadeiro eu, mesmo junto de tantos outros diferentes. Vestir a fantasia “implica simultaneamente um ocultar e um revelar da individualidade”, nas palavras de Roberto da Matta.“Mascarar-se, na verdade, é substituir uma máscara por outra, revelar-se.” Vergara encomendou um ensaio ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro para uma exposição com suas fotos do Cacique. O ensaio está no livro Carnaval-Ritual e uma passagem traduz bem o espírito do carnaval e desse ato de (des)mascarar-se: “Uma paixão do mesmo e um desejo do outro ao mesmo tempo, neste tempo outro que é o Carnaval”. Esse estranho espelho que atrai e repele. Revela verdades, desejos escondidos. Não à toa Vergara escolhe capturar algumas cenas através das poças d'água nas ruas, revelando um reflexo da imagem e não a realidade em si.
Essa incorporação do vestir-se foi também percebida por Hélio Oiticica, amigo de Vergara, que na época morava em Nova York. Vergara chegou a mandar as fantasias do Cacique algumas vezes para Hélio nos EUA. Sua pesquisa com o Parangolé andava pelo mesmo caminho e depois de trocar com Vergara sobre a experiência deste em vestir a napa e se transformar a partir desse ato, Oiticica concretizou seu interesse no “clímax corporal”. Em suas palavras: “A obra requer aí a participação corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, que dance em última análise.” Tanto o Parangolé quanto as fantasias de napa do Cacique de Ramos dependem do corpo que as veste, elas só existem se em movimento e incorporadas a alguém.
Vergara vestiu a pele dos Caciques e proporcionou uma “cumplicidade entre observador e observado”. Incorporado à multidão, Vergara passa a pertencer ao grupo. Em uma relação de entrega sensorial, a única exigência do bloco era ter Vontade. A possibilidade de se espremer e se sentir livre. Muitas fotos retratam o famoso momento de ataque do bloco, em que a bateria vai andando na frente e a multidão segura para trás uns 100 metros. Na virada da bateria a multidão corre, urra gritos de guerra e joga suas fantasias para o alto. É o verdadeiro despir-se de tudo, alegria total, euforia máxima. As imagens capturadas pulsam, se movimentam. As fotografias viajaram para a Bienal de Veneza em 1980, ocupou e ainda ocupa galerias e museus Brasil afora.
“Tem um tipo de fantasia que não consigo desvestir, que é essa de estar vendo o mundo de uma forma também crítica”, Carlos Vergara
por Luísa Pollo
O livro Carnaval - Ritual de Maurício Barros de Castro é da Editora Cobogó e foi publicado em 2021.
Agradecemos a abertura e receptividade de João Vergara, sempre entusiasmado e grande agitador dos trabalhos do pai.