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Essa relação entre os papéis femininos, o doméstico e o cuidar foi o que as associou a essa capacidade de criação dos laços de comunidade. São elas quem passam os saberes, quem constroem as tramas que entrelaçam a vidas das pessoas e o afeto que sustenta as relações. Por isso são atribuídas às figuras femininas na mitologia a habilidade e responsabilidade de tecer e criar, e assim cozer e entrelaçar as tramas que em suas misturas tornam-se algo mais do que a soma de diferentes indivíduos, torna-se vida, torna-se comunidade. LEIA MAIS
As Moiras são figuras da mitologia grega encarregadas de elaborar, tecer e interromper o fio da vida de todos os seres. Seu poder era incontestável e nem mesmo Zeus poderia intervir, pois este trabalho mantinha a ordem natural do Universo. As três Fiandeiras do Destino, como eram conhecidas, eram as responsáveis pelo futuro das pessoas.
Em diversas mitologias as mulheres e o traçar dos fios está ligado às etapas essenciais da existência – o início e o final da vida. Tecer é criar, é contar histórias. A costura é a metáfora não só da vida, mas da vida em comunidade. Os diversos fios unidos por um cuidadoso trabalho resultam em algo novo, repleto de significados que vão muito além da simples soma das linhas.
A percepção de que o tecer é uma função da mulher está calcada em normas culturais e sociais que historicamente associaram a costura ao trabalho doméstico feminino. Assim, é uma atividade associada aos papéis tradicionais das mulheres como cuidadoras e donas de casa. Essas atividades ligadas à reprodução do mundo, à esfera doméstica, às mulheres e ao cuidado por muito tempo não foram consideradas trabalho.
Penelope Unraveling Her Work at Night, Dora Wheeler
Enquanto Ulisses luta na guerra de Tróia e percorre uma odisseia para retornar à sua casa, Penélope, sua esposa, promete que só dará o marido como morto e se casará novamente quando terminar a peça que está tecendo. Então tece de dia e a noite desfaz todo trabalho feito pela manhã, controlando ela mesma o tempo da sua espera.
Essa relação entre os papéis femininos, o doméstico e o cuidar foi o que as associou a essa capacidade de criação dos laços de comunidade. São elas quem passam os saberes, quem constroem as tramas que entrelaçam a vidas das pessoas e o afeto que sustenta as relações. Por isso são atribuídas às figuras femininas na mitologia a habilidade e responsabilidade de tecer e criar, e assim cozer e entrelaçar as tramas que em suas misturas tornam-se algo mais do que a soma de diferentes indivíduos, torna-se vida, torna-se comunidade.
Mas cuidar e costurar são trabalhos, majoritariamente exercidos por mulheres. E como trabalho, manipula a natureza para gerar algo novo, dotado de sentido. E no processo de trabalho, transforma-se não só o mundo, mas também a si mesmo. Por isso transforma e cria.
Algumas das mulheres do nosso atelier. Nossa força, nossa união e nosso talento de todos os dias.
Tolhidas de direitos individuais e políticos, muitas mulheres encontraram na costura um meio de expressão de si e até de subversão dos papéis a elas atribuídos. O trabalho da costura, realizado no espaço doméstico, permitiu que muitas obtivessem uma fonte de renda e assim, adquirissem maior autonomia no lar. A indústria têxtil incorporou majoritariamente as mulheres em sua mão de obra e as trabalhadoras desse segmento encabeçaram embates importantes na luta por direitos trabalhistas.
Antes de terem direito a ler e escrever, as mulheres já costuravam. Sem uso para papel e caneta, faziam das linhas e agulhas ferramentas para falar de si, colocar-se no mundo, comunicar e construir significado, contar histórias, transmitir saberes.
Na mitologia grega, Aracne aparece como uma jovem tecelã extremamente habilidosa. Tomada pela hybris, ousou comparar-se a deusa Atena, patrona da arte da tecelagem. As duas então organizam uma competição e Atena borda os deuses do Olimpo em sua glória e cenas dos deuses castigando os mortais que atentaram contra a autoridade divina. Aracne borda então com perfeição cenas das traições amorosas de Zeus, pai de Atena, e as consequências terríveis desses encontros, em uma crítica ferrenha aos deuses e suas intempéries. Atena pune Aracne e a condena a tecer por toda eternidade.
Apesar do final disciplinador típico das narrativas divinas, o mito ilustra como o trabalho com linhas e agulhas torna-se um meio de expressão das suas vivências particulares, uma linguagem partilhada onde cabem narrativas de afeto, rebeldia e subversão. O Olimpo, no entanto, fica muito distante daqui. Temos nossos próprios deuses a louvar e a desafiar, nossas próprias histórias a contar.
O costurar como um contar é um dos elementos mais marcantes da obra da artista visual Rosana Paulino, que expôs a mostra “Costura de Memória” na Pinacoteca de São Paulo em 2018. Sua obra “Parede da Memória” ilustra perfeitamente a relação das mulheres e da costura com a criação do mundo e de lugar de construção de suas próprias narrativas.
A obra é composta de retratos de família, impressas como Patuá, com detalhes adicionados à mão pela artista como cores e costuras com ponto caseado. Assim, Paulino ilustra como a costura constrói uma história de sua origem, da sua história familiar e da história do mundo, mediada pelos entrelaces do trabalho cuidadoso de mulheres.
Costurar e cuidar foram trabalhos relegados às mulheres e elas o transformaram em arte. No trabalho cuidadoso dessas mulheres é que se cria o mundo. Costurar é criar, criar é contar.
Às costureiras, que constroem o mundo, contando um pouco de si a cada ponto.
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Gabriela Caruso é doutora em Sociologia, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL) e pesquisadora no Programa Diversidade (FGV Direito Rio)
Para mais sobre os mitos e o tecer como metáforas da escrita, ver “O Manto De Penélope E A Teia De Aracne: Tecituras Feministas De Nietzsche” ANDRADE, Mariana. Revista Ideação, N. 42, Julho/Dezembro, 2020
Para mais sobre a obra “Parede da Memória” de Rosana Paulino, ver: Graichen, G., Desconci, L. . K., & Barbosa, R. A. (2021). Da caixa ao cubo: análise da obra “Parede da Memória” de Rosana Paulino. RELACult - Revista Latino-Americana De Estudos Em Cultura E Sociedade, 7(4).
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Foto de Abertura: Parede da Memória, Rosana Paulino