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A estampa Capitonê do nosso preview de verão 2024 começou a ser criada com pinceladas de tinta em uma tela a partir de uma encomenda. A artista carioca Kika Diniz iniciou sua carreira por volta de 2016 desconfigurando corpos femininos representados no mainstream e questionando o erotismo que essas imagens suscitam; adentrou o universo dos algoritmos se deixando levar pela imposição repetitiva das imagens que as redes oferecem para criar em cima destas e no meio de sua nova série de pinturas, pincelou uma poltrona de couro com acabamento de capitonê que virou nossa estampa. Batemos um agradável papo com a Kika sobre sua intenção de transformação das imagens e quais técnicas ela utiliza.
Kika, suas pinturas têm como característica pinceladas fortes, quase dá pra sentir o cheiro da tinta. Como é o seu processo e escolha no uso dos materiais e técnicas?
Minha pintura tem uma característica muito específica de ser rápida. A tinta acrílica se aplica bem à velocidade que eu costumo trabalhar porque o tempo de secagem é bem pequeno. Isso também traz outras questões, como a impossibilidade de apagamento do que foi feito. Trabalho com a ideia de que não existem erros na pintura, existe um diálogo entre o fazer e o que está sendo feito, uma confiança no processo e no que ele próprio traz para as imagens. Por isso muitas vezes o resultado final guarda poucas semelhanças com a imagem inicial. A imagem é um ponto de partida.
Para nossa coleção atual criamos a estampa Capitonê a partir da sua
pintura de uma poltrona com essa técnica, encomendada pelo André, nosso diretor criativo. Qual sua relação com essa pintura e como é vê-la virando diferentes peças de roupa em diferentes tecidos e modelagens?
Na série que tenho trabalhado nos últimos 2 anos, odeioestrogonofe, parto de imagens que chegam por algoritmos das redes sociais como ponto de partida para a pintura. O processo com o André foi um pouco diferente porque ele já tinha uma ideia de paleta a ser usada e a imagem inicial do capitonê, mas me deixou livre para deixar o processo me guiar na construção da pintura. Fiquei impressionada em como ele conseguiu transformar a pintura em outra forma de arte, amei o resultado e o diálogo que ele suscita entre os materiais usados, a formatação e a ideia inicial do que é a técnica do capitonê. É preciso ter uma visão artística incrível pra conseguir criar essa conversa entre as técnicas de uma forma tão bem-sucedida, por isso quando recebi as fotos das peças só consegui dizer “André, você é foda”.
No seu trabalho de pintura a partir dos memes de internet, você usa a tinta preta impermeável e reflexiva como base para suas telas. Além da provocação clara de que tudo o que você colocar a partir dali estará no “superficial”, essa escolha me lembrou a "teoria do liso” que o Byung-Chul Han aborda ao falar do belo. Ele diz que o liso, o polido, a curva sem interrupções ou quinas, são características do que é belo atualmente. Para você, em que lugar fica o belo no seu trabalho?
Primeiro preciso te agradecer por me apresentar essa teoria, que eu ainda não conhecia. Desde que recebi as perguntas, fui à procura do livro e ele me abriu toda uma nova forma de interpretar meu próprio trabalho. A teoria do liso aborda a falta de fissuras e relevos no que tem sido produzido hoje em dia, uma positividade do consumo que desemboca nas curtidas e compartilhamentos das redes sociais. Ele fala de um autoerotismo na experiência dessas imagens que seria da ordem do consumo e da pornografia. O liso não apresenta resistência e está esvaziado de profundidade e superficialidade, como no trabalho das esculturas de Jeff Koons, produzidas, de acordo com o próprio artista, para criarem o fator “uau”, não havendo o que decodificar. Minha dissertação de mestrado foi sobre imagens pornográficas e seu afastamento da ordem do desejo, mas desde que terminei o mestrado, me direcionei para a pesquisa do que seria uma pornografia das imagens. Não pinto exatamente memes, eles também aparecem, mas a “regra” é que as imagens cheguem por algoritmos (esse também responsável pelo achatamento e lisura da experiência virtual), que lêem suas preferências e te mandam conteúdo de acordo com elas. Uma experiência feita para que passemos mais e mais tempo diante da tela do celular, sem resistência. Como você colocou, eu inicialmente trabalho a tela para que ela seja preta e a mais lisa possível, quase um espelho preto, isso faz com que os gestos fiquem sempre muito marcados na pintura evidenciando as próprias fissuras do gesto. Os pincéis que uso tem cerdas duras e demarcam ainda mais o toque e a pincelada, deixando os rastros do processo visíveis. Quando me deparei com a teoria do liso, comecei a pensar nessas frestas que o pincel e o toque marcam nas imagens, na inversão de lógica da lisura da experiência virtual autoerótica de produção, reprodução e consumo. São imagens produzidas inicialmente para serem curtidas e passadas, que Byung-Chul Han afasta do juízo estético e do belo por achatar a experiência e ignorar as fissuras, que são para ele essenciais no belo. Na pornografia da imagem, não há buracos, tudo se torna transparente e vira dado, a comunicação e consumo atingem sua velocidade máxima quando o igual reage ao igual, daí a ideia do autoerotismo. O liso suprime a alteridade, criando um belo digital que bane a negatividade do não-idêntico e os algoritmos trabalham nessa lógica. O que tento fazer é justamente admitir essa alteridade da imagem e do processo da pintura quando trabalho a partir dessas imagens. Digo sempre que trabalho “a partir” porque não procuro uma semelhança idêntica à imagem inicial. Acredito que a arte é um eterno diálogo e a pintura é um outro que deve ser ouvido durante o processo.
Você está trabalhando em algo novo agora? O que pode nos contar sobre sua investigação atual na arte?
Senti que precisava dar um tempo nas imagens de algoritmos e olhar para outros lugares, então por alguns meses trabalhei em uma série chamada Segundo Sol onde parto de fotos e vídeos de nuvens para deixar a pintura acontecer. O resultado foram pequenas paisagens de muitas camadas sendo colocadas e retiradas (ainda com a tinta acrílica e respeitando sua impossibilidade de apagamento), anulando o gesto do pincel. Por fim, pontos pictóricos eram colocados com espátula em locais aleatórios, demarcando novamente o gesto e a criação de um relevo. Eu penso muito nos flares das lentes objetivas, fenômeno que ocorre pela impossibilidade da câmera de apreender o feixe de luz direto. Mas dependendo de quem vê, essas pequenas massas de cor podem parecer cometas, asteroides ou espermatozoides. Gosto dessa ideia de fim e começo, tudo junto. Agora estou voltando para a série odeioestrogonofe e trabalhando nas duas.
Kika é artista plástica formada em artes visuais na EAV Parque Lage e mestra em Estudos Contemporâneos das Artes da UFF. Foi indicada ao Prêmio Pipa em 2022.
Conheça aqui a coleção Capitonê.
Texto por Luísa Pollo
Imagens cedidas pela artista