— 01 de dezembro de 2022
No início da década de vinte do século XX, intelectuais e artistas encontravam-se ávidos pela renovação cultural, elaborando distintas propostas para pensar o polivalente fenômeno do moderno no Brasil. Sem dúvida, em um primeiro momento, a região Nordeste terá um protagonismo sob a liderança de Gilberto Freyre, no Recife. LEIA MAIS

Quem primeiro apresenta a ideia de Modernidade Tropical é o pernambucano Gilberto Freyre, que em 1924 funda o “Centro Regionalista” e que em 1926 organiza o congresso regionalista e tradicionalista, onde apresenta o “Manifesto Regionalista”.Manifesto que, então, já trazia críticas às tendências vanguardistas do modernismo paulista, que ao seu ver, propunha processos de reelaboração da cultura tradicional (popular) sobre o ponto de vista do moderno.

Freyre defendia uma modernidade baseada na tradição, ou seja, em uma permanente adaptação do novo às suas origens. Gilberto também cria o conceito de tropicologia, para o estudo antropológico dos homens dos trópicos, que serve de referência para a criação dos famosos “Seminários de Tropicologia” sediados no Recife e até hoje organizados pela Fundação Joaquim Nabuco, na capital pernambucana.

É importante ressaltar que se fizermos uma pesquisa nas principais revistas dos diferentes estados do país, no início da década de vinte do século XX, veremos como intelectuais e artistas encontravam-se ávidos pela renovação cultural e elaborando distintas propostas para pensar o polivalente fenômeno do moderno no Brasil. Sem dúvida, em um primeiro momento, a região Nordeste terá um protagonismo sob a liderança de Gilberto Freyre, no Recife.

Posteriormente, em uma congruência de diferentes fatores, Salvador passa a ser um importante polo do debate. A criação da Universidade da Bahia e o papel de seu emblemático reitor fundador Edgard Santos entre os anos de 1946 e 1952, propicia a organização de uma nova cena artística e intelectual, impulsionada com a criação das primeiras escolas superiores de Dança, Música e Teatro do Brasil, além da instalação de importantes museus.

Neste contexto, em 1958, Lina Bo Bardi é atraída a vir trabalhar na Bahia,inicialmente para lecionar na Escola de Belas Artes por um semestre juntamente com o arquiteto Diógenes Rebouças. Em 1959, é convidada pelo governador Juracy Magalhães para fundar o Museu de Arte Moderna da Bahia (1960). O convite para implantação do primeiro museu de arte moderna no Nordeste do Brasil, estimula a arquiteta a pensar um modelo de instituição voltado para o social, através de concepções pedagógicas direcionadas à uma ideia de “nacional-popular”, formuladas por Antônio Gramsci, sua grande referência ideológica. 

É no segundo semestre de 1958 quando Bo Bardi aproxima-se do diretor da escola de teatro Martim Gonçalves e conquista a amizade de jovens estudantes como Glauber Rocha, Paulo Gil Soares e Fernando da Rocha Pere, alguns de seus grandes admiradores durante esse momento de formação e, posteriormente, na implantação de seus futuros projetos museológicos. É Martim quem lhe apresenta o espaço do Solar do Unhão, onde futuramente Lina viria a montar o histórico Museu de Arte Popular. Em 1959, realizam a revolucionária exposição Bahia no Ibirapuera, à convite da organização da V Bienal de São Paulo. Tal exposição demonstra as profundas trocas e a nidades conceituais entre o teatrólogo e a arquiteta. Um projeto expositivo que parte de um contexto cénico-teatral no qual as raízes populares da cultura baiana são contrastadas com as correntes internacionalistas do projeto modernista paulista.

O projeto artístico e sua concepção social do MAM-Bahia é construído, então, em uma época de encontros mais diretos e intensos, época de grandes agitações e expectativas das metrópoles do Sudeste. A localização estratégica do Museu no foyer do Teatro Castro Alves convocava à uma grande participação popular na formação de um público raramente antes registrado em eventos dessa natureza no Estado. Além de formar uma geração de jovens criadores, artistas e colecionadores que teriam um impacto nos novos rumos da arte e da cultura nacional.

Contudo, além dessa grande contribuição no MAM-Bahia, a arquiteta irá ambicionar pretensões ainda maiores a partir da implantação do projeto do Museu de Arte Popular no Solar do Unhão. Um novo modelo de ocupação em espaços arquitetônicos, integrando edifícios de diversos usos e feitios à uma arrojada concepção de intervenção em um patrimônio histórico.

Em novembro de 1963, Lina inauguraria então o MAP (Museu de Arte Popular), apresentando duas mostras simultâneas: uma de objetos populares do Nordeste ou Civilização Nordeste e outra de artistas do Nordeste, em geral. Movida por uma sensibilidade antropológica e uma experiência estética e política internacional, implanta um projeto de museu avançado em que os objetos do seu acervos não funcionassem com uma espécie de semióforos. Isto é, os objetos do acervo não estariam mortos distanciados de suas utilidades originais, sacralizados pela instituição. Eles funcionariam como uma biblioteca viva, documentos de referências, das artes e dos fazeres populares do Nordeste.

O acervo de objetos era pensado com fontes de referência, a serem utilizados pelos alunos da sua almejada – Escola de Mestres e Projetistas –, onde saberes populares dialogariam com saberes acadêmicos, colocando lado a lado alunos universitários e mestres artesãos, com trocas de experiências compartilhadas e plurilaterais. A primeira etapa de implantação do projeto seria a reunião de um vasto acervo de objetos populares recolhidos no Nordeste, por exemplo. Tal empreitada só fora possível graças a colaboração entre outros estados do Nordeste. No Ceará, Bo Bardi contará com o empenho de Lívio Xavier e em Pernambuco com o de Francisco Brennand, objeto de pesquisa da presente publicação.

Tais objetos, segundo Lina, deveriam ser adquiridos em feiras ou espaços de produção dos mesmos. Assim, os objetos coletados, inseridos em seu contexto original, conservariam a sua atualidade utilitária. O deslocamento para o contexto do museu não os transformariam em objetos ou fetiches de exposição. Seriam apresentados como documentos contemporâneos da sua existência, visibilizando suas utilidades em suas soluções construtivas. Os objetos do passado não deveriam fazer parte da coleção pois não representariam as soluções vivas da sua artesania e de seu contexto social. A formação desta tríade entre os colaboradores da Bahia, do Ceará e de Pernambuco formaria um abrangente panorama da produção de objetos populares do Nordeste de então, distanciando-o dos conceitos tradicionais de coleções museológicas que os reuniam em seus acervos objetos do passado.

Radicalmente original, a concepção de Lina sobre o acervo cultural foi elaborada a partir da revisão de conceitos sobre o popular: as ideias de povo, de folclore, de artesanato e mais. Inicialmente, define a ideia de nação a partir de uma conceituação e de uma caracterização de um povo: reconhecendo o caráter dinâmico das tradições populares, seu caráter vivo e não preso a um passado estático, propondo assim uma nova abordagem que resultaria na concepção de um povo-nação que definiria a famosa Civilização Nordeste. A nova cultura viria, então, a reunir as massas populares e dissolveria, assim, velhas separações entre as ideias de uma cultura moderna e de uma cultura popular.