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Nem sempre bons designers são bons desenhistas. E a recíproca é mais do que verdadeira, pois a palavra design vem da raiz latina desígnio, que traz embutida a noção de futuro. O reconhecimento de Sergio Rodrigues como designer obscureceu a devida apreciação tanto de sua faceta como arquiteto (essa vem recebendo alguma luz recentemente), quanto a força e originalidade de sua vertente de desenhista.
E é nessa última que eu quero me deter nesse texto, sobre a releitura de desenhos de Sergio pelo estilista André Namitala. Ambos nasceram no Rio de Janeiro, com 65 anos de diferença – Sergio em 1927, André em 1992. Sergio começa a atuar na década de 1950. Indo na contramão de uma elite que bebia nas referências europeias, ele criava móveis, objetos e ambientes sintonizados com seu tempo e seu lugar - um Brasil que acreditava no novo, um Rio de Janeiro que revolucionava costumes e relações.
Os desenhos de Sergio trazem, escancarados, os pensamentos por trás dos móveis, a sua visão de futuro embutida neles – uma concepção de morar tropical, de bem com a vida, confortável, livre, brasileiro. Não resta dúvida de que não era cópia de nada nem de ninguém. Informais, bem-humorados, vibrantes de vida, eles trazem o ser humano não apenas para referência de escala, mas deixam claro que o bem-estar e a convivência amistosa entre as pessoas era o objetivo último do projetista. Os desenhos evidenciam ainda como ele tira o design de interiores do âmbito de diletantes interessados em emprestar suposto status social aos seus clientes para entendê-lo dentro do domínio da cultura.
Os arquivos do Instituto Sergio Rodrigues guardam uma infinidade desses tesouros, e é de lá que André Namitala pinçou alguns desenhos inéditos de ambientes e detalhes construtivos da linha de móveis Cuiabá para levar para as roupas. Sobre os tecidos (shantung, seda, linho) estão os bordados em pontos Richelieu, corrido, pesponto, caseado, dente de cão, atrás, cheio, haste, nó francês etc... delícias de nomes a indicar a diversidade desse fazer, que inclui também, em alguns detalhes, bordados à máquina. Miçangas entram para simular os veios das madeiras. Quadradinhos de acrílicos com molduras de madeira representam espelhos. A renda encorpada de fundo vazado guipir faz as vezes das palhinhas dos móveis. Estamparia, aplicações de tecidos, inserções de pedaços de couros e de pequenas hastes de metal se juntam numa sinfonia de texturas.
Não é uma mera transposição de um suporte para outro, pois André junta, agrupa, funde e reelabora desenhos dispersos. Do mesmo jeito que Sergio misturava materiais, ele mistura técnicas. Trata-se de uma (re)criação que transborda a ideia original do mestre e a sintoniza com os tempos atuais, em que há uma valorização ímpar do feito à mão.
Ao contrário de se retrair, como se preconizava no século 20, o artesanato vem se expandindo na contemporaneidade. “Nesse processo recente, há uma ressignificação da atividade, que – num mundo cada vez mais uniforme, padronizado e virtual – alude a valores como calor humano, singularidade e pertencimento”[1]. Uma reflexão a esse respeito vem sendo feita pela conferência acadêmica Making Futures, realizada desde 2009 pelo Plymouth College of Art, na Inglaterra, que investiga o artesanato, o movimento maker e a arte como potenciais agentes de mudança na sociedade do século 21, apontando a emergência de uma estética de produção e consumo com base em movimentos de pequenos artesãos.
Embora essa emergência seja global, ela adquire maior relevância social e econômica nos países em desenvolvimento, onde se disseminam coletivos de mulheres que têm no artesanato a sua fonte de subsistência, que podem praticar com dignidade, sem precisarem sair de seus lugares de origem para irem engrossar a legião de sub-empregados nas grandes cidades. E é a alguns desses grupos de mulheres espalhados pelo Brasil afora que a Handred recorre, numa rede de colaboração em que as especialidades têxteis de cada uma são demandadas e valorizadas.
O filósofo e historiador da arte francês Henri Focillon tem um texto precioso em que discorre sobre as mãos como “instrumento da criação” e também como “órgão do conhecimento”. “A mão arranca o tato à passividade receptiva, organiza-o para a experiência e para a ação. Ela ensina o homem a possuir o espaço, o peso, a densidade, o número. Criando um universo inédito, deixa sua marca em toda parte. Mede-se com a matéria que ela metamorfoseia, com a forma que ela transfigura. Educadora do homem, a mão o multiplica no espaço e no tempo”, diz ele. [2]
Vejo nesse trabalho que a Handred agora fará chegar às nossas mãos algo que desafia o tempo e o espaço, ao mesmo tempo nos ancorando neles. André Namitala leva os desenhos de Sergio Rodrigues para outras praias, suportes, apreciações e usos. E faz isso em conjunto com dezenas de mulheres detentoras de primor técnico, do prazer do bem-feito, a praticar no cotidiano os gestos que permitem suas (e nossas) reconexões com as ancestralidades. Uma linda conversa, portanto, entre diferentes mãos, corações e mentes.
[1] BORGES, Adélia. Design + Artesanato: o caminho brasileiro. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.
[2] FOCILLON, Henri. “Elogio da mão”. In Revista Serrote. Instituto Moreira Salles, São Paulo. Edição 6, novembro de 2010.
Por Adélia Borges, crítica de design.