— 24 de janeiro de 2024
Foi na tarde de sexta-feira do dia 15 de agosto de 2014, em uma roda informal e afetuosa com o Sergio Rodrigues, que se deu esse encontro, e que nove anos depois, é pela primeira vez compartilhado aqui. Inédita, esta foi a última entrevista dada por ele em vida. LEIA MAIS

Foi na tarde de sexta-feira do dia 15 de agosto de 2014, em uma roda informal e afetuosa com o Sergio Rodrigues, que se deu esse encontro, e que nove anos depois, é pela primeira vez compartilhado aqui.[1] Em seu apartamento, sentado na poltrona Mole, aos sons dos passarinhos e do trânsito ao longe de Botafogo, no Rio de Janeiro, por quase duas horas, Sergio foi nos contando sobre sua prática arquitetônica, desde o final dos anos 1950, nessa imbricação do designer-arquiteto-desenhador (e, quiçá, poderíamos dizer também do aviador?), com contribuições acrescentadas por Vera Beatriz, sua esposa e parceira, e por Fernando Mendes de Almeida, seu herdeiro de artesania e design e atual presidente do Instituto.

“Eu sou apaixonado por madeira. E sou arquiteto. Então, ligou aí madeira e arquiteto, e as experiências que eu comecei a fazer foram justamente a arquitetura em madeira”.

Nossa conversa começou focada no sistema construtivo SR2, criada por Sergio Rodrigues, que permite projetar qualquer programa de arquitetura a partir de peças padronizadas para montar e compor, como uma maneira de construir, em que o que define as modulações são os painéis industrializados de madeira. Como ele disse: “minha ideia era criar um sistema que fosse pré-fabricado, e não com repetição de modelos. (...). Eram para ser coisas conforme a necessidade, poderia ser feita a casa individual, a casa composta, como a casa multifamiliar e outras coisas, como hospedarias, e outros tipos de casas. E eu comecei a pensar isso já em [19]58-59 (...). Eu achava que precisava de uma indústria para produzir aquilo, e comecei a fazer então estudos de casas de madeira. (...) Uma casa pré-fabricada única não quer dizer nada. Muita gente pode fazer uma casa de madeira. (...) Casa industrial, porque poderia resolver em diversos lugares do Brasil, com um local central que pudesse produzir aquilo. E comecei a fazer por minha conta mesmo. Eu tinha uma fábrica, que era a OCA, e que por sua vez estava produzindo meus móveis, semiartesanais, não era indústria também. Mas, com horário mais livre, no final da tarde e dias de feriado, havia essa possibilidade que eu podia utilizar o pessoal mesmo da fábrica para me dar uma mão para uma coisa dessa.”

Nessa fase inicial do sistema SR2, as duas primeiras casas foram feitas ao mesmo tempo: o protótipo exposto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1960, e a casa para a família Fialho em Petrópolis (num vínculo que se deu pela amizade e pela paixão mútua por aviões dele e da família cliente). A modulação do projeto foi baseada nas dimensões das placas de madeira compensado existentes no mercado na época (1,22 x 2,44m), com estrutura de peroba do campo de 3 polegadas (0,075m) (ref. ainda norte-americana de medida). Nesta primeira fase do SR2 nos anos 1960, a cobertura era plana, com placas de feltro asfáltico. Na exposição do MAM RJ foram apresentadas três possibilidades de plantas para casas de um, dois e três dormitórios (com áreas de 25, 47 e 65m2) além da área do térreo, com altura de dois metros da suspenção da casa. “Eu já tinha esquematizado esse programa da montagem da casa. Mas, a história é saber como isso poderia ser feito em grande escala. E realmente fui, fiz o estudo pensando nesse sentido. (...) como era feito por partes, o que valeria seria um desenho das peças da casa que pudessem ser repetidas (...) e a casa foi feita. Foi um sucesso grande”.

Sergio nos conta, então, do interesse de Lúcio Costa (autor do projeto urbanístico de Brasília) por sua arquitetura pré-fabricada, a partir de uma visita à exposição do MAM RJ, abrindo caminhos para ele construir com o sistema SR2, hospedagens-alojamentos e restaurante na Universidade de Brasília e a primeira sede do Iate Clube na nova capital federal.

Importante lembrarmos do contexto sociocultural e econômico daquela época. A exposição do sistema pré-fabricado de Sérgio Rodrigues no MAM RJ foi simultânea à inauguração de Brasília, em 1960, e ambos tinham como perspectiva comum a industrialização do país, em relação a um processo complexo vertiginoso de urbanização e crise habitacional no Brasil. Os princípios de pré-fabricação e modulação – também cada vez mais aportados na Europa e na América do Norte – eram discussões intrínsecas à industrialização da construção civil, que ecoavam naquele período da construção de Brasília, com um número significativo também de arquitetos brasileiros interessados pela produção seriada. Porém, como aponta a historiadora Ana Luiza Nobre, o que estava em jogo não era nada fácil: “viabilizar a produção seriada num ambiente cultural ainda profundamente resistente à industrialização e à racionalização da construção”, apontando para os limites da estrutura social brasileira, e situando os desafios enfrentados também por Sergio.

Na década de 1980, um segundo ciclo do sistema SR2 foi inaugurado a partir de um novo protótipo, a própria residência do arquiteto, desdobrado em modelos denominados Xiklin 90 e Xiklin 120, desenvolvidos com sua filha arquiteta Veronica Rodrigues, numa escala pequena de escritório. Fernando, que trabalhou com Sergio em aproximadamente 25-30 projetos no terceiro ciclo do SR2, a partir de 1993, ressalta as dimensões de paginação dos novos modelos pré-fabricados de madeira, a partir do anos 1980 (1,60 x 2,20 m, já em padrão brasileiro), e dos anos 1990 com painéis Wall (1,20 x 2,50 m), com medidas específicas de fixação, novas coberturas de uma ou mais águas, ou o telhado ‘vagãozinho’, em uma concepção mais aberta de combinação de elementos, sempre dentro da modulação: muxarabi e muxarabão, clarabóia (“sempre onde eu morei tinha clarabóia”, compartilhou Sergio), escada Santos Dumont, pé-direito duplo, lambri, e balanços, em que a estrutura se dá como um sistema de relações entre elementos articulados e autorreguláveis em uma malha ortogonal, chamada gaiola. A multiplicidade de combinações de suas construções, seguiu tendo uma dimensão experimental de protótipo. Comenta Sergio, “Nenhuma casa das talvez 200 que fizemos teve uma relação com a outra. A única semelhança de uma com outra, foi uma que foi feita espelhada.” Ele nos lembra também que “tem que ter conservação. A pessoa que tem uma casa de madeira tem que ter consciência... [a casa] é um ser vivo.”

Em sua infância, Sergio vivenciou uma arquitetura eclética, “mas eu nunca dei atenção a isso, (...) porque na realidade o que eu queria fazer era avião. Era desenhar avião, fazer avião.” E, “minha avó perguntou, por que você não faz arquitetura? É simples. (...) E, como eu gostava de desenhar, eu fui fazer um curso de arquitetura, e passei”. Sergio criava histórias e fabulações para ambientar os espaços: “Eu vou explicar uma coisa engraçada. Eu e minha filha, quando pegávamos um projeto. A gente sempre estudava bem o cliente, as manias dos clientes e imaginávamos determinada época que devia ser a casa. A casa, por exemplo, do Boboniché, [aqui a casa é de alvenaria, não usa o sistema SR2] nós chamávamos de casa do Dom Quixote e Sancho Pança. É como se Dom Quixote e o Sancho Pança morassem ou vivessem naquela casa. As paredes são meio tortas. É simpaticíssima aquela casa. Você chega na casa, você vem da rua, você não vê uma janela, a iluminação de um lado”. Entrelaçavam-se o domínio técnico e a dimensão lúdica, que ele criava por meio de desenhos e histórias, presentes nos mobiliários, nas espacialidades e nos modos de viver cotidianos, convidando a uma outra presença do corpo, mais mole, mais provocadora, menos normatizada.

O aspecto daquilo que ele desejou ser, e achou que não foi, como desenhador de aviões, foi sim!!! Pois, o que fazem os aviões? Levam pessoas e objetos pelo ar, próximos das nuvens, nos conectando a mundos e histórias diferentes e a quem amamos, por viagens mais encurtadas. É como se o Sergio Rodrigues, nessa dimensão artesanal, cuidadora, lúdica, de suas mãos e corpo que criam e da voz que reconta e inventa, pudesse ser semente de uma floresta ampliada e múltipla, em que as árvores – transmutadas em casa, em cadeira, em histórias afetivas –, ecoam, não como fim, mas, como nos ensina Antônio Bispo dos Santos, como “começo, meio e começo”.

[1] Inédita, esta foi a última entrevista dada por ele em vida, aproximadamente duas semanas antes de falecer no dia 01 de setembro de 2014. Proposta pelo Instituto Sergio Rodrigues, participaram dessa roda de conversa com Sergio Rodrigues: Renata Aragão, Fernando Mendes de Almeida, Mari Stockler, Vera Beatriz Rodrigues, Ciro Ghellere e Ligia Nobre. Todas as citações aqui são fragmentos desta entrevista gravada pela autora deste texto, no dia 15 de agosto de 2014. 

 

Por Ligia Nobre, curadora e pesquisadora.