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Se há receitas de conforto na vida… não acredito nelas até que se bote a mão na massa, a barriga no fogão, encarar excessos de salgados e de azedos antes de sentir equilíbrio e deleite. Ou seja, minha curiosidade sempre me fez questionar as coisas prontas, a fama imediatista. Gosto de saber sobre como aquele banquete sensitivo, artístico e cultural aconteceu e de qual história de vida nasceu.
Conheci pessoalmente Sergio Rodrigues por ocasião da exposição comemorativa dos 40 anos da criação da sua famosa, premiada, linda e gostosa poltrona Mole. O ano foi 1997 e o local o Rio Design Center, que continua no Leblon sem mais o original propósito de design center. Nele fui gerente executiva das exposições durante quase 20 anos e foi o meu maior e mais superior ensino nos universos das artes, da arquitetura, do design e de diversificadas culturas brasileiras e do mundo.
Trabalhei em exposições de muitas mentes criativas e únicas, ainda enquanto vivas de corpo e alma: Burle Marx, Rubens Gerchman, Roberto Moriconi, Tunga, Jorge Guinle, Juarez Machado, Flávio Berredo e outros que não estou me lembrando agora, infelizmente. Dentre a turma de arquitetura e design brasileiros: Tenreiro, Zanine, Sergio Bernardes, Janete Costa, Aída Boal e Sergio Rodrigues. Com cada uma destas personalidades tive o contato como uma operária que não tinha vergonha de perguntar, de demonstrar juntas as minhas admiração e ignorância. Dependendo do momento, qualquer ser humano pode ser agradável ou não. Há os que ficam só do lado bom e Sergio Rodrigues foi um deles, de quem tenho as lembranças saborosas que conto aqui.
Ao longo de meses, participei de muitas reuniões no escritório da Conde de Irajá com Sergio, sua companheira do amor e das vidas criativa e empreendedora Vera Beatriz e sua filha Verônica, também arquiteta, profundamente empenhada no engrandecimento das obras de seu admirado pai.
Sergio Rodrigues era um cara simples, gentil, delicado e muito engraçado. Logo no início das reuniões de planejamento do evento, ele fazia questão de dizer que estava agradecido pela iniciativa, mas que talvez fosse um exagero. Claro que as pessoas que já o conheciam retrucavam, tipo lá vem ele de novo com a modéstia de se expor. Mas eu fiquei impressionada porque isso não era nada comum entre os grandes criativos que conheci em plena fama. Com o tempo, passei a achar que o que ele queria mesmo era viver ambos os momentos: o do Sergio Rodrigues designer/ arquiteto/ famosonoBrasilenomundo e o do Sergio carioca/ chargista/ contadordehistórias. Um era indissociável do outro. Nos anos 90, Sergio Rodrigues expressava o seu conquistado jeito de ser, desapertado. A boina, o bigodão, os óculos que se acompanhavam de suspensórios, camiseta, camisa, colete ou jaqueta utilitários, tênis ou sapatos bem confortáveis. Quase sempre com o toque divertido de meias coloridas.
Nos anos 60, ele ainda não se vestia assim. Era o início da carreira quando se lançou a grandes desafios. Usava o terno e gravata como obrigação, mas sua liberdade de criar e de se entregar ao trabalho sempre foram extraordinárias.
Uma história que pode ilustrar o que acabei de dizer, é sobre a inauguração do auditório da UNB quando Sergio foi convidado por Darcy Ribeiro a projetar e entregar 250 cadeiras longarinas em 20 dias!! Imagina o sufoco deste prazo num lugar que não tinha mão de obra especializada em pleno cerrado. As cadeiras Candango chegaram lá e acabaram de ser instaladas na última hora da inauguração. Somente uma deu errado e Sergio ficou no lugar dela, em pé, para que ninguém percebesse a sua ausência durante a cerimônia. Isso está descrito no trecho “A Bossa em Brasília” no site do Instituto e representa pra mim a introspecção do Sergio Rodrigues em estar amalgamado à sua obra numa situação assumidamente de risco e, por um triz, desconfortável.
Naquela casa em Botafogo, onde hoje é a sede do Instituto Sergio Rodrigues, acompanhei o próprio, escolhendo os desenhos/charges que iam decorar o espaço da exposição de seu mobiliário. Traços que misturam inspiração e técnica, o ar que o artista respirava e as ferramentas que usava de menino a arquiteto, as referências culturais brasileiras e as fórmulas artesanais e matemáticas de tornar valioso algo até então depreciado. Assim ele quis se expor ao público. Não era só a obra/móvel/produto de cuja venda ele e equipe viviam (e vivem). Ele oferecia uma exposição amorosa, bem humorada, íntima de como ele era e sugeria poder ser a vida. Tenho a honra de dizer que fui aluna de Sergio Rodrigues por alguns meses. Com ele e sua obra aprendi não só sobre o design do móvel moderno brasileiro, mas também sobre o conhecimento, cultura, sobre a procura de se expressar individualmente, sobre a vontade de aprender, questionar e encontrar um lugar de fala.
Me visto de Handred e me olho no espelho. Ao meu lado e à minha espera, aquela coisa mole, aconchegante, meio útero. Rola um transe. Uma transa. Atemporal.
Por Sandra Freitas, produtora.